22.9.25

Um teco-teco contra as grandes torres

 


Em “A Montanha Mágica”, Thomas Mann leva o jovem Hans Castorp a uma visita ao primo, Joachim Ziemssen, internado para tratamento da tuberculose em uma clínica nos Alpes suíços, perto da cidade de Davos — hoje ponto de encontro anual dos muito ricos com representantes de governos, alguns desses nem tão ricos assim. Acontece que Castorp entra e não sai. Quer dizer, nesse momento, vencidas mais de quinhentas das oitocentas páginas, ele, que enfim também está tuberculoso, não deixou o sanatório, embora seu primo, num arroubo, o tenha feito. Castorp é descrito assim: “Não era um gênio nem um imbecil, e a razão de evitarmos para sua qualificação o termo ‘medíocre’ reside em circunstâncias que nada têm que ver com sua inteligência, e quase nada com sua personalidade singela”. O que importa é que esse romance de formação (desse, desse, sejamos sinceros, desse medíocre que passa a lutar contra a morte,) explora inúmeras dualidades. Fala-se da vida ali em cima em contraste com a lá de baixo, a do doente em contraposição à dos saudáveis. Ao conhecer os intelectuais Settembrini e Naphta, Castorp entra em contato com visões de mundo opostas, sem nenhum ponto de interseção. O primeiro, um italiano crédulo da humanidade, da ciência, do progresso (à moda europeia); o segundo, um judeu que se tornou noviço jesuíta sem, contudo, por conta da tuberculose, chegar a diácono. Entre os dois ocorrerão embates intermináveis – nas quinhentas primeiras páginas, não há notícia de que se tenham transformado em inimigos. Naphta defende que a ciência deve estar sob o jugo da religião, chegando inclusive a duvidar de que a terra não seja o centro do universo, saber esse que custou a vida de muitos cientistas. Entende a guerra como um desígnio de Deus, em contraposição ao outro, um pacifista. Eu achava que essa gente que aposta em armas, desdenha da ciência, usa a religião como estratégia de dominação era coisa do passado, mas a verdade é que, cem anos depois da publicação do romance (na década de 1920, entre as duas grandes guerras), ainda jogamos a ciência contra as cordas, apesar de tantos avanços, que nos levaram à lua, que curaram muitas doenças (a tuberculose, por exemplo), que produziram armas letais precisas – o que tanto agrada os poderosos beliscosos, quer dizer, belicosos. Um século de passadas largas e pelo jeito patinamos no mesmo gelo.

Se o mundo é assim, também não é tanto assim. Não consigo me lembrar o que me motivou nem como consegui o número, mas um dia liguei para o consultório do Guinga, que, já músico conhecido, parceiro de Aldir Blanc e Paulo César Pinheiro, ainda atendia como dentista. Sei que da nossa conversa pintou um convite para assisti-lo no Jazzmania, casa de show que não existe mais. Fui, obviamente. Ao final da apresentação, conversei com ele e dei-lhe de presente um exemplar de "A palavra em construção", primeiro livro de que participei, uma coletânea de contos do grupo Estilingues. O Guinga é a simpatia em pessoa. Corta. Alguns anos depois, vou a um show dele com o Hermeto Pascoal. Quem não foi, morra de inveja e imagine a beleza daquele encontro. Terminado o espetáculo fui eu puxar prosa com o Guinga de novo. Ele então me perguntou se eu tinha sacado o que acontecera ali. Do que ele estava falando? Hermeto, com seus improvisos, tentara derrubá-lo o tempo todo. O ex-dentista não estava chateado, ao contrário, estava radiante por ter enfrentado o desafio proposto por um gênio. Hermeto, Hermeto, você me ofereceu os melhores shows a que já assisti em minha vida. 

Escrevo uma crônica da falta de assunto; pior, sem direção. Não vou me desculpar com o leitor, já que, tendo chegado até aqui, não se contentará com um simples “errei, perdoa, vai”. Como tempo é valor, ou tento corrigir a derrapada ou esclareço o real motivo de estar tão disperso, embriagado até. Opto pela segunda. Sabe o que é, não quero carnavalizar minha alegria vingativa, pois acho horrível esse sentimento. Todavia, é com ela que tenho convivido desde o último 11 de setembro, quando as torres dos candidatos a ditador vieram abaixo, abalroadas pelo teco-teco da justiça. 

7.9.25

Antimusical

 


Ouço menos música, constatação que me entristece, pois sempre fui um ouvinte dedicado, tentei até tocar um violãozinho, no que, para sorte do mundo, fracassei. Nos festejos familiares, tive os primeiros contatos com as modas de viola cantadas por meus pais, primos e amigos. Depois, veio a trilha dos meus irmãos com as românticas italianas, sucesso nos anos de 1960, os Beatles (e o iê-iê-iê tão nosso) e o garoto Chico Buarque, xodó das meninas. Andando com as próprias pernas, conheci o rock, fazendo de Pink Floyd e Queen meus preferidos.

Houve um dia, porém, que chegou lá em casa o "Milagre dos Peixes ao vivo", de Milton Nascimento, e sua audição não só transformou o moleque que eu era como também abriu-me as portas para a MPB. E tome os clássicos (Noel, Pixinguinha Dorival Caymmi e Bossa Nova), a geração de 1960 (Chico, Caetano, Gil, Betânia, Gal, Paulinho da Viola, Tom Zé, Sueli Costa), a que veio em seguida (Sérgio Sampaio, Rita Lee, João Bosco, Joyce, Secos e Molhados) e a posterior (os independentes, como Rumo, Itamar Assumpção e Arrigo Barnabé). Não fui um grande fã do rock dos anos 1980, ainda que escutasse Marina, Cazuza e Titãs. Por outro lado, mergulhei em Cartola e toda a dinastia do samba.

A música instrumental tomou seu lugar não sei bem como (as orquestrações do disco ao vivo do Milton ajudaram), mas certa hora Egberto Gismonti me tirou do chão. No rastro dele, vieram o pessoal do samba-jazz e, orientado pelo avô de meus filhos, o próprio jazz, em particular seus ídolos Chet Baker e Modern Jazz Quartet. Comecei a escrever ouvindo música, em especial a instrumental, mas não somente. As palavras de um Cacaso, de um Fausto Nilo ou de um Vinícius de Moraes não atrapalhavam as que eu, catando milho, escrevia na antiga máquina de datilografar —— primeiro manual, depois elétrica —— e, mais tarde, no computador.

Tudo isso ficou para trás. Não, tenho de me corrigir. Continuo adorando música, mas minha relação ficou mais complexa. Por exemplo, não consigo escrever com música, nem a mais suave das clássicas. Como passei a usar fones para fugir das reclamações sobre meu gosto musical feita pelo pessoal de casa, hoje preciso estar isolado —— no melhor momento caminhando pelo Aterro, pela Urca ou pela Lagoa. Tem acontecido de eu começar a ouvir um disco (sempre inteiro, detesto aleatoriedade ou lista) à noite e perder o sono. A música (mais que os filhos) me tira o sono. Fico excitado, repito não sei quantas vezes o disco todo ou algumas de suas partes.

Claro que, com menos dedicação, tornei-me seletivo. Digo assim para não confessar que não acompanho as novidades. O pessoal xinga ou elogia os novos cantores, diz que é tudo uma pasmaceira ou uma maravilha sem fim, e eu desconheço o objeto do ódio ou do amor. Quer dizer, de quem falam, eu sei, todos ocupam a mídia, mas estou por fora do que tocam ou cantam. De todo jeito, alguns chegam a mim quer porque minha filha ou meu caçula dizem que tenho de ouvir fulano, quer porque uma revista elogia beltrana de tal. Procuro escutar e gosto de uns, de outros, não. Os que gosto, como Alice Passos, Luedji Luna e os não tão novos assim, Márcio Faraco e Emicida, incluo na trilha sonora de minha insônia (ou das passadas fortes sob o sol) na qual já estão Sivuca, Miles Davies, Titane, Lula Queiroga, Pat Metheny, Mônica Salmaso, Deep Purple, Zeca Pagodinho, Fátima Guedes, Vitor Ramil, Marianne Faithfull, Keith Jarret, Nina Simone, Led Zeppelin, Joaquin Sabina, Novos Baianos, Leonard Cohen, Elizeth Cardoso. Sem esquecer Chopin e Satie. Sem esquecer... ah, lista inumerável!

Preocupado com a minha disposição no dia futuro, me policio nas madrugadas e lá pelas tantas tiro o fone do ouvido. Tento dormir, o que não acontece de imediato, é preciso um tempo até que ocorra o desmame do vício.

25.8.25

Etiqueta

Na minha recente ida a Belo Horizonte, uma de minhas irmãs contou que, nos anos de 1960, ao instalarem o primeiro telefone na casa de meus pais – o 752, um dinossauro que, para falar em outra cidade, precisava da ajuda de telefonistas, e uma chamada de Passos ao Rio de Janeiro poderia demorar horas a fio até se completar –, mamãe disse que um dia veríamos numa tela a pessoa com quem falaríamos, ou seja, ela anteviu a chamada de vídeo. Minha irmã acredita que essas visões futuristas de dona Haydée estavam ligadas à leitura de Julio Verne. A literatura parece ter alguma utilidade, vejam só. Meu interesse não é a literatura – ainda que, vocês verão, também seja um pouco –, é ter sido alcançado pela lembrança materna ao voltar ao Rio de Janeiro.

Nossa vida está inteirinha no celular, o que é bom. Mas, gente, inventaram bem antes dele o fone de ouvido, que, numa viagem – dentro ou para fora da cidade –, nos ajuda a ouvir música ou áudio ou ver um filme ou jogar esses joguinhos barulhentos sem importunar ninguém. É a coisa mais simples do mundo. As mensagens trocadas no aplicativo, por sua vez, podem ser escritas, não é preciso usar o áudio. Eu não preciso saber – como soube – que a filhinha do rapaz sentado na poltrona atrás da minha estava com o pé machucado, que assim que ele chegasse ao destino iria levá-la ao médico. Mais que isso, que pensava em recorrer à justiça para ficar com a guarda de suas três crianças, no momento nas mãos de uma mãe relapsa. Um drama sério, mas e meu sono? E a leitura da moça ao lado? Foram para as cucuias. Para lá também foram o sono, a leitura, a conversa fiada recém-iniciada por dois estranhos quando o telefone da senhora na poltrona que o corredor separava da minha tocou numa altura impressionante. Imagino que ela já não escute tão bem – eu mesmo perdi a audição supimpa da juventude, o que, segundo a mamãe (de novo), seria inevitável já que ouvia o Pink Floyd em volume doentio –, mas há meios alternativos de saber se o celular está tocando, o famoso modo vibratório. Enfim, é preciso respeitar o outro, pensar que o coitado não está minimamente interessado na sua vida. Além do mais, preservar a intimidade é uma forma de se proteger nesse mundo abarrotado de larápios.

Minha rabugice encontrou mamãe nas curvas perto de Barbacena, cidade das flores, da aeronáutica e do terrível hospital de doentes mentais, hoje, felizmente, fechado. Dona Haydée prezava a etiqueta, que impunha aos filhos – tenho uma boa educação pequeno-burguesa, apesar de ter sido rebelde. Não digo os bons modos à mesa, nem a educação superlativa que acha um absurdo chamar os outros para comer, quando se pode chamá-los para almoçar, lanchar ou até mesmo cear, mas uma etiquetinha nesses tempos de exposição excessiva ao mundo virtual cairia bem.

Digo mais, podemos estender os bons modos ao mundo literário. Não, não vou sugerir que deixem de ler na rua, no ônibus, onde quer que seja – a leitura não incomoda ninguém. Tampouco direi que não se deve molhar a ponta dos dedos para virar as páginas (mesmo porque muitos leem livros eletrônicos). Por favor, leiam sempre e muito e do jeito que quiserem. Meu assunto é com o escritor circunstancialmente simpático, aquele que é tomado, às vésperas de um lançamento, por uma amabilidade jamais vista. Acho normal convidar, em rede social, deus e o mundo para um evento nosso. Acho razoável abordar com parcimônia pessoas pelo WhatsApp. Agora, enviar mensagens particulares, forçando uma intimidade inexistente, é duro na queda. Pessoas com quem não convivo, sem noção de tudo, já me disseram que sou o escritor/leitor mais importante do mundo. Ô, simpático de ocasião, segura as pontas.          

Para rabugentos feito eu, mamãe também teria conselhos a distribuir. Talvez dissesse: “Ao comer o pão de enxofre que o diabo furtou, mastigue de boca fechada, o cotovelo longe da mesa, o corpo ereto, os pés bem postados no chão. Não avance na comida com sofreguidão, dê-se ao paladar. Distraia-se pensando na infância, na adolescência, na sua história. Não cuide da vida alheia.” Ou seja, me orientaria a, em vez de criticar o outro, me ajeitar comigo mesmo. O fone de ouvido, citado ainda há pouco, serve para eu ouvir o velho Pink num volume confortável e me libertar do movimento dos demais passageiros do ônibus. Posso simplesmente ignorar os excessos do colega de escrita – senão perdoá-los. A ansiedade mata a gente, sei como é.

11.8.25

Um sonho

 Com a democracia pendurada no pau de arara e assim exibida em praça pública, sonhei que havia morrido. Morto, passei por toda a preparação: da limpeza do corpo à vestimenta, da acomodação no caixão ao transporte em carro funerário. O interessante é que, mesmo tendo partido dessa para a outra – quem saberá se é a melhor? –, eu tinha consciência de tudo. Olha só, me vestiram um terno! Ó, até que não é tão desconfortável essa urna! O ápice viria a seguir. Deixado no local do velório, levantei-me, dirigi-me a um sujeito que não parecia estar ali por minha causa e dei-lhe um belo soco na cara. A vítima era ninguém mais, ninguém menos que o torturador máximo da democracia: Trump. O que poderia parecer um pesadelo, era, de fato, uma vingança velada: uma quimera.

Os psicanalistas que me desculpem, não analiso esse sonho a partir de minhas suscetibilidades ou de meus desvãos, mas sim como homem político. Precisamos dar um soco – a minha índole pacifista clama para que o entendam como metáfora – no senhor Laranjinha e passar uma rasteira nessa turma que, empunhando Bíblia, fala sozinha pelo plenário do Congresso ou, agindo como jovens inconsequentes, arma um escarcéu na casa da democracia. Uma vez caída no chão, ordenar que recolham ao lixo essa nata do atraso.

Estamos diante de um velho fantasma, o fascismo, num mundo turbinado por inovações tecnológicas. Lutar nesse ambiente é o desafio. Seja como for, penso que meu sonho quer dizer que o velho homem humanista, na pele do eu defunto do sonho, não pode aceitar a própria morte, deve levantar-se do caixão e partir para a luta.

Como lutar é que é o negócio. Protestar nas ruas parece estar fora do catálogo político, nesses tempos de ágora eletrônica, que, aliás não é isenta e do povo, como a Castro Alves na Bahia carnavalesca. A e-praça tem lado, o deles.

26.7.25

Anedotas literárias

Soube não faz muito tempo de uma história ocorrida com dois baitas escritores. Vargas Llosa, ainda jovem, foi entrevistar Borges, seu ídolo, em Buenos Aires. O autor de “O Aleph” vivia num apartamento pequeno e não muito bem conservado. O entrevistador, antes dos assuntos literários – senão em vez deles –, começou a fazer perguntas sobre o apartamento, talvez preocupado, até mesmo desapontado, afinal de contas estava diante de um gigante. Quando o escritor peruano foi embora, Borges perguntou se teria sido um corretor de imóvel que o visitara.


Imagem gerada por IA

Um caso desses vai ganhando demãos de tinta ao passar de uma pessoa a outra. Borges pode ter feito a pilhéria da visita para algum amigo, que tratou de passar a outro já com uma camadinha maior de ironia. O fato e o chiste teriam se perdido caso Llosa não se tornasse também um gigante. Quer dizer, na literatura, imenso; na política, não muito distante do que foi o próprio Borges, um fiasco.

Escutei esse caso num trecho de uma palestra que Ricardo Piglia, outro escritor argentino, fez não sei nem onde nem por qual razão. Seja como for, a “vítima” do disse me disse não raro guarda mágoas. Assim, suponho, o soco que Llosa deu em Gabo – por ciúme, já que o colombiano, um grande amigo até então, esticava os olhos para a sua esposa – pode ter tido a força adicional de uma vingança contra Borges.

No Brasil, onde não falta pugilismo literário, há uma historinha com cheiro de invenção e bem conhecida, cujos personagens são diferentes, conforme a versão. Da primeira vez que a ouvi, eram Antonio Maria, cronista e letrista, e Vinícius de Morais. Antonio Maria contou a Vinícius que, na ponte aérea entre São Paulo e Rio, uma moça o confundiu com ele. O ainda embaixador – Antonio Maria faleceu em 1964 e Vinícius perdeu o posto em 1969, na ditadura – ficou curioso e disparou um “e aí?, e aí?, e aí?”. Aí, disse-lhe Maria, ele deu corda ao papo, pediu um uísque, e a conversa engatou. Desceram no Santos Dumont, alojaram-se no restaurante, comeram alguma coisa e tomaram mais uma bebidinha. “E aí?, e aí?” Aí, continuou o letrista de “Manhã de carnaval”, foram para um hotel. “E aí?, e aí?” “Aí, poetinha, você broxou.”

Vinícius, que se casaria nove vezes – salvo engano meu ou dele – não parece ter se importado com isso. Fosse Ziraldo, a coisa fervia, pois o incansável cartunista, escritor e jornalista nunca admitiu um fracasso sexual. Como o autor de “Flicts” ostentava uma senhora coleção de coletes, não duvido dele.

Embora transite entre escritores desde 1987, não tenho grandes histórias, embora uma ou outra tenham lá sua graça. Quando organizamos o grupo Estilingues – eu e seis amigas, depois de recusados na oficina literária que frequentávamos, pois estávamos, segundo a direção, adiantados e atrapalharíamos os novatos, passamos a nos encontrar em casa, vez ou outra contratando uma pessoa para nos orientar –, resolvemos consultar o Sérgio Sant’Anna sobre a possibilidade de nos acompanhar por uns tempos. Fui encarregado de fazer o contato. Liguei para ele e, logo depois de ouvir sua voz, mandei um “a gente somos um grupo”. Educadamente, recusou o convite. Eu faria o mesmo. Ou não? Sei lá.

Me encontrei certa vez com o mesmo Sant’Anna num lançamento, e ele estava apreensivo, pois pela primeira vez ganhara um bom dinheiro com a literatura. Como a grana estava em sua conta-corrente, seu medo era que um hacker a roubasse. Tentei tranquilizá-lo, afinal não era tanto dinheiro assim, e os golpes eram mais no atacado que no varejo. Por falar em roubo cibernético, depois de um tempo sem nos vermos, eu, Horácio – hoje um retrato na parede do meu afeto – e Nelson marcamos um chope no Bar Luiz, tradicional restaurante alemão que não suportou a crise mais recente e foi fechado depois de funcionar por cento e trinta e cinco anos. Lá pelas tantas, Horácio – além de escritor e artista plástico, um pioneiro da computação no Brasil – sugeriu que roubássemos um banco. Seria, como temia Sant’Anna, uma ação limpa, uma invasão eletrônica, um assalto cibernético. Não, não fizemos isso, porém, como defende um meme já clássico, se feito, estaríamos apenas reagindo já que foram os bancos que começaram.

Nesse mesmo Bar Luiz, estávamos eu e um grupo do trabalho, amigos sem nenhuma ligação direta com a literatura, quando um homenzarrão entrou pelo bar lotado e, vendo que tínhamos uma cadeira vazia, pediu para se sentar conosco. Eu sabia quem era, os demais, não. Ele então contou que havia acabado de sair de uma reunião do PDT (cuja sede era a uma quadra dali) e precisava respirar e tomar um chope com Steinhaeger. Deu um gole, deu outro, mais um e, copos quase vazios, dirigiu-se a nós perguntando se o havíamos lido. Permaneci quieto, enquanto os outros se mexiam nas cadeiras e olhavam o vazio. Contrariado, o penetra balançou a cabeça de um lado para o outro, deu mais um gole e falou sem modéstia que era preciso que o lêssemos, seu nome era Fausto Wolff. Levantou-se e foi embora. Meus colegas me olharam um pouco atônitos, e eu afirmei que, apesar daquela mendicância messiânica, sim, deveríamos ler o escritor gaúcho.